O cárcere está em todos nós (Artigo de jornal)

 A modernidade ocidental se apoiou em duas ideias, a do destino e a da ciência. A do destino assegurava uma finalidade cosmológica; a da causalidade, a do progresso científico e técnico. Ambas as imagens, explica V. Flusser, no seu Pós-História (2011), visavam legitimar um processo de objetivação cultural da modernidade que, aparentemente, seria guiada por uma ética implícita. Mas a modernidade começou a ter falhas de memórias. Auschwitz (o campo de concentração nazista onde se assassinavam os judeus) foi um dos primeiros grandes aparelhos do século XX que contribuíram para o colapso da modernidade. Auschwitz brotou diretamente do fundo da cultura ocidental, dos seus valores e conceitos. 

Depois deste evento muitos outros surgiram: os campos de palestinos, de refugiados na Europa e, também, as penitenciárias no Brasil. O ministro Jungmann reconhece que estes aparelhos não são mais dominados pelo Estado, mas pelos traficantes. Porém, os cárceres não estão fora da sociedade, eles refletem nossos valores culturais e nossas decisões políticas. Os cárceres revelam redes de cooptação e colaboração que se estendem para além dos muros e apenas ilusoriamente separam os “maus” e os “bons” cidadãos. Todos somos cúmplices do aparelho quando admiramos o “jeitinho brasileiro” ou nutrimos discriminações com negros(as) e pobres. Todos vivemos os cárceres ao ligar a TV diariamente para curtir amedrontados, mas com prazer, o ressentimento e o ódio nosso com relação àqueles que nomeamos de “vilões”. Pois somente assim podemos nos livrar cinicamente das responsabilidades de sermos co-autores dos cárceres que estão também em nós. 

A saída? Resgatar um valor que foi fundamental para a modernidade, o da liberdade — de cada um e de todos. Apenas a valorização desta utopia e de seus efeitos práticos pode ajudar a liberar afetos positivos de solidariedade, gentileza e cuidados com a democracia.

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