A multidão e a luta por visibilidade pública (Artigo de jornal)

O tema da multidão é central no debate sobre as perspectivas da democracia no século XXI. Recentemente, M. Hardt e A. Negri lançaram um livro sobre o assunto intitulado “Multidão, guerra e democracia na época do Império” (2015), propondo que a multidão seria a resposta contra o Império. As revoltas expressariam as brechas por onde brotariam novas singularidades. Infelizmente, aqui, a ideia de multidão permanece muito abstrata e otimista não refletindo as reações políticas ambíguas das multidões no mundo, hoje. Isto exigiria incluir a discussão republicanista sobre os fundamentos da liberdade na ação política que H. Arendt faz em “A condição humana” (1958). A contribuição de Espinoza (1632-1677) sobre o tema é valiosa. Ao condicionar a ação racional aos afetos e desejos estabelece as bases para um entendimento das multidões como potência que legitima a coesão da república. G. Tarde em “A opinião e as massas” (2005) focaliza o tema na perspectiva da diferença entre público e multidão que ele afirma ser apenas de grau. O público estimularia a necessidade crescente de sociabilidades regulares dos membros. Ao contrário, na multidão a individualidade se atenuaria e predominariam as similitudes étnicas demandando um fator externo de unificação como a de um líder.

Como as diferenças são de grau, haveria situações, diz o autor, em que o público pode ficar superexcitado revertendo para multidões fanáticas “que percorrem as ruas gritando vida e morte a qualquer coisa” (p. 15). O debate convida a se pensar as condições jurídicas, políticas e institucionais de canalização política dos desejos e afetos em contextos de crise. Quando o pacto republicano deixa de funcionar os públicos são deslocados para as margens do social, para os lugares onde a multidão surge como facções e tribos urbanas e a cidadania sobrevive precariamente: nas ruas e praças, nos templos, nas prisões e nos estádios. A multidão pode fortalecer ou pode corroer o público democrático. Tudo depende dos dispositivos de produção e de valorização política do bem comum. Em sociedades como a brasileira a desorganização das ações públicas nas áreas de educação, saúde, trabalho e assistência social vem impactando negativamente sobre a produção de sociabilidades solidárias. Neste contexto a luta por visibilidade pública das multidões é irrefreável. Protestos e arrastões são apenas sintomas. Os salvadores de ocasião são invocados para fazer o justiçamento da multidão, mesmo que isto possa significar o sacrifício da democracia e da paz social.

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