Verdades, mentiras e dogmas (Artigo de jornal)

A tradição cristão contribuiu para a organização de um processo civilizatório forjado na separação entre o Bem e o Mal, estando a verdade situada no lado do primeiro e a mentira, no lado do segundo. Este modelo moral foi útil para organizar a colonialidade ocidental e o ataque a culturas não europeias em nome da afirmação do Divino contra o Maléfico. A própria ciência se beneficiou desta narrativa imperial, afirmando a separação metodológica entre verdade (científica) e demais saberes (tidos como vulgares).

No fundo, tínhamos um dogma metafísico que legitimava deus como referência última na definição da verdade e da mentira. Mas a realidade da modernidade se revelou mais complexa que aquela oferecida pela metafísica.

O holocausto na Alemanha, na Segunda Guerra, com o extermínio de milhares de judeus em nome da preservação da pureza da raça ariana, ajuda a explicar como as crenças étnico-raciais refazem os sentidos do que seja moralmente certo e errado.

Heidegger tem uma explicação interessante. Ele diz que na modernidade a técnica deslocou a metafísica de seu lugar de onipotência e a inseriu na experiência mundana dos entes humanos. Tal deslocamento gerou esclarecimentos e novas obscuridades. Por um lado, favoreceu a emancipação de uma série de movimentos identitários, a começar pelo feminista até chegar numa reavaliação ecológica radical da relação entre humano e natureza. Por outro lado, favoreceu a emergência de uma série de movimentos religiosos que não se referem mais à hierarquia cristã tradicional, e que se apropriam do divino numa lógica que mistura crença e utilitarismo prático. Aqui, neste mundo dos humanos, Deus passou a justificar balas, agressões, expropriações, ressentimentos e fake news.

As novas tecnologias digitais contribuem para elevar a temperatura das ansiedades coletivas, radicalizando com alta dose de alucinação a separação epistemológica tradicional entre deuses e demônios. Há algo ao mesmo tempo fantástico e sinistro neste mundo distópico em que a inteligência artificial passa a funcionar como protagonista da vida cultural.

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