A miscigenação contra o purismo identitário

O POVO (Ceará) 16/12/2023

O livro de Manoel Bonfim “América Latina, Males de origem” (1905) foi o motivo de um debate acalorado entre ele e Silvio Romero sobre o tema da mestiçagem. Para Bonfim, que havia sofrido influências das ideias libertárias de Dumas, na França, a miscigenação era um fato histórico que deveria ser interpretada como favorável à formação cultural dos brasileiros. Ele entendia que educação era o caminho para a cidadania das classes populares. Suas teses libertárias bateram de frente com aquelas racistas de Romero. Para este, o povo brasileiro seria um mestiço semibárbaro que somente poderia evoluir mediante o branqueamento da população. Este seria a solução para o “defeito de formação” étnica do brasileiro.

Note-se que em Bonfim mestiçagem não significa automaticamente branqueamento. Para Bonfim mestiçagem seria um caminho da auto-afirmação popular e não uma ideologia como o embranquecimento. Esta representação positiva da mestiçagem é comum em vários países da América Latina e Caribe onde não mais se encontram grupos étnicos originários. Um ilustre colega sociólogo dominicano, Jesús Días, sintetiza com bom humor sua condição miscigenada: “Quando estou em República Dominicana, sou dominicano; quando estou no México, sou mexicano; quando estou no Brasil, sou brasileiro”. E concluiu: “sou um homem livre”. Esta discussão é fundamental para se rever o debate sobre identitarismo, pois ele tanto pode servir a bandeiras democráticas como a bandeiras antidemocráticas. A negação da miscigenação pode levar a lutas identitárias “puristas” que favorecem paradoxalmente o neoliberalismo antidemocrático. Pois este se posiciona a favor das lutas pela diversidade desde que elas reforcem o individualismo e o consumismo de bens materiais e imateriais. Por isso, é necessário se aprofundar esta discussão sem revanchismos e juízos sectários em favor do futuro da democracia no Brasil. A ressignificação do identitarismo é importante para se construir um modelo nacional e popular aberto ao diverso, mas focado no enfrentamento da desigualdade.

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