Nesta entrevista cedida a revista Cronos, dedicado ao tema (De)Colonialidades, Fronteiras e Saberes, Paulo Henrique Martins – Sociólogo e Professor Titular da UFPE – faz-nos compartilhar de sua vivaz narrativa, com foco em sua traje- tória intelectual, mais particularmente, no trecho onde o tema da América Latina ganha, gradativamente, realce em sua produção acadêmica. Ao tempo que narra suas próprias experiências intelectuais, ele vai desatando os fios temáticos da decolonialidade e pós-colonialidade na América Latina.
Por: Norma Takeuti – Professora Titular e pesquisadora em Ciências Sociais/UFRN.
NT (NORMA TAKEUTI): Sua experiência intelectual está relacionada, em primeiro lugar, à sua formação acadêmica na Europa; somente mais recentemente, nos anos 2000, se volta para a América Latina, em particular com sua passagem pela Associação Latino- Americana de Sociologia (ALAS). Antes, porém, de falar sobre a sua experiência no interior da ALAS, poderia nos contar como se deu a aproximação com o pensamento latino-americano?
PHM (PAULO HENRIQUE MARTINS): Minha experiência de intercâmbio efetivo com América Latina é recente, de dez anos para cá, desde 2005, embora eu venha me interessando pelo tema da inserção do Brasil na região, há mais de 20 anos. Minha segunda tese de doutorado (1991, França) intitulada O mito do desenvolvimento da América Latina: o caso do Brasil prova este interesse acadêmico (a primeira tese do Doctorat 3º. Cycle [1981] versava sobre a modernização oligárquica). Mas este “atraso” com relação ao tema continental (considerando que atuo em programas de pós-graduação no Brasil, desde 1981) não é acidental, devendo ser colocado no contexto de uma geração de intelectuais brasileiros que foram estudar na Europa e nos USA, e que não foram estimulados a guardar contatos com a realidade latino- americana. Esta “europeização” se deu no contexto do processo de expansão da pós-graduação no Brasil, entre as décadas de 1970 e 1990, quando houve um boom de criação de programas desse tipo, em grande parte nas Universidades públicas brasileiras. Tais políticas de pós- graduação que surgem, ainda, no período da ditadura militar e que se estendem pelos períodos da redemocratização, dos anos 1980 e 1990, denotam um forte viés eurocêntrico, de europeização da cultura intelectual brasileira. No que diz respeito particularmente a esta geração que foi incentivada a fazer seus mestrados e doutorados na Europa, para poder se habilitar às novas exigências da profissionalização acadêmica no Brasil, o fato é que houve certa recolonialidade do saber com forte identificação dos intelectuais brasileiros dessa geração, com as teorias sociais produzidas nos países centrais.
NT: Esse processo de recolonialidade de saberes pelos programas de pós-graduação teria provocado atraso na emergência de um pensamento social latino-americano mais orgânico…
PHM: De fato, de um lado, reforçou um movimento de recolonialidade dos saberes acadêmicos no Brasil, deixando o tema da latino-americanização brasileira em posição periférica, ou seja, da inserção do Brasil na América Latina. Tema que abre necessariamente outro leque de reflexões particulares, que escapa ao imaginário europeu, deslocando-se para imaginários ameríndios, africanos e asiáticos e para as experiências sincréticas e híbridas que aqui prosperaram. De outro, aquele processo contribuiu para provocar certa descontinuidade em movimentos intelectuais anteriores, voltados para a construção de um pensamento acadêmico latino- americanista, como foi o debate em torno do estruturalismo cepalino ou da teoria da dependência. Isto resultou necessariamente em impactos negativos em termos de reflexões mais profundas sobre as particularidades de nossa formação histórica, numa linha que tinha sido aberta antes por intelectuais como Gilberto Freyre, Mario de Andrade, Sergio Buarque, Florestan Fernandes, Darci Ribeiro e alguns outros mais.
Desde a minha tese de doutorado, meu interesse pela América Latina se fez progressivamente à medida que percebia o peso de ser estrangeiro na Europa. Certamente, os brasileiros não sofrem mesmos tipos de discriminações de africanos e árabes na França, mas este processo ocorre igualmente mesmo que de modo mais sutil. No nosso caso, a discriminação é mais moral, tendo a ver com certa classificação dos discursos intelectuais a partir do caráter de universalidade do mesmo. No topo da pirâmide há o discurso acadêmico francês, tido como o mais universal. Em seguida, seguem os demais discursos considerados menos universais.
Esta classificação, na academia, gera uma segregação sutil, mas poderosa, que contribui para interferir nos processos de construção das estimas e dos reconhecimentos mútuos entre indivíduos de nacionalidades diferentes. Tive acesso e conheci pessoalmente essa transição epistemológica na Europa e a vivi como experiência acadêmica e existencial. Na minha experiência como estudante estrangeiro na França pude sentir a discriminação sutil contra os não europeus e comecei a entender a importância da depreciação moral sobre a formação da identidade e do lugar do indivíduo no mundo. Então, há um desamparo moral e afetivo que tanto contribui para reforçar o sentimento do autoexílio como para libertar uma reflexão anti-colonial que, naturalmente, leva a pessoa a buscar estender a compreensão de seu contexto cultural e étnico de origem. A comunidade latino-americana progressivamente me atraiu. Esclareço que isto não significou nenhuma aversão ao pensamento europeu que considero referência fundamental para o desenvolvimento do pensamento crítico e democrático, em todos os lugares e, inclusive, para o pensamento decolonial que prosperou na Índia e na América Latina. Minha relutância era contra as tendências de universalizar o pensamento europeu em detrimento de outros pensamentos e práticas intelectuais e culturais como a latino-americana, tidas como experiências menos universais.
Assim, progressivamente, como latino- americano de raiz lusitana, fui aos poucos sendo atraído pelo pensamento latino-americano de raiz hispânica, entendendo a importância de aproximar minha experiência europeia com minha experiência latino-americana. Isto me permitiu mergulhar mais profundamente sobre as conexões e distâncias entre o pensamento europeu, do Norte, e o não- europeu, do Sul (Sul e Norte são aqui metáforas para diferenciar o pensamento colonizador do pensamento anticolonial). Considero importante sublinhar as conexões entre os pensamentos críticos do Norte e o do Sul porque a própria ideia de decolonialidade (ligada a decolonialité, descontrução da colonialidade) que vem sendo referência importante entre os pensadores do Sul, está articulada à crítica epistemológica europeia dos anos 1970 e 1980, em particular a crítica linguística, presente em autores como Foucault, Derrida e Deleuze.
Então, quando se fala em descolonial ou decolonial não estamos falando apenas do pós-colonial, mas da tarefa de desconstrução linguística e cultural da colonialidade. Não há como não ver aqui uma relação estreita entre essa abordagem do pensamento pós-colonial chamada descolonial, com os avanços do desconstrucionismo linguístico (e do reconstrucionismo) que também tem forte influência inglesa mediante a filosofia prática de autores como Wittgenstein. O pensamento decolonial (não-europeu) latino-americano se inspira nessa perspectiva aberta por um pensamento pós-moderno ou pós-estruturalista, como queira chamar, que foi adaptado a uma perspectiva não- europeia. Vale a pena então recordar que a crítica à modernidade no interior das ciências sociais europeias – que se expande nos braços da fenomenologia, da hermenêutica, da linguística, da semiologia e do pensamento antiutilitarista de autores como Mauss, Simmel, Sartre e outros -, tanto liberou novas perspectivas de construção de narrativas históricas do Ocidente como inspirou a autonomização de um pensamento crítico não europeu (postcolonial studies, subaltern studies) na Ásia, África e América Latina. Neste último continente, em particular, a formulação de uma crítica decolonial, foi fundamental para a liberação dos movimentos étnicos, de mulheres entre outros.
NT: Que intelectuais franceses influenciaram na sua formação intelectual?
PHM: Cheguei pela primeira vez na França, em Paris, no ano de 1977, para fazer minha pós-graduação em
Sociologia, quando apresentei uma tese de doutorado de 3º. Ciclo sobre o tema Modernização da oligarquia açucareira no Nordeste do Brasil (1981). Seguindo uma tradição marxista e historicista de minha geração, tentava ver a modernização conservadora regional por olhos otimistas, isto é, analisando como o progresso técnico contribuiria para uma mudança das mentalidades e formação de uma ideologia burguesa progressista. Esta visão era compartilhada por muitos outros, de minha geração, que estudavam os processos de desenvolvimento no Terceiro Mundo. E a França era especial para fazer fervilhar este tipo de discussão, pois ali encontrávamos, diariamente, estudantes de todos os recantos do globo, muitos deles exilados, sonhando com os projetos da esquerda democrática mundial. Estudei no IEDES (Instituto de Estudos de Desenvolvimento Econômico e Social), em Paris, que era frequentado por muitos estrangeiros da América Latina e de outros continentes. Vale lembrar que esses institutos de desenvolvimento tinham muita importância na formação das burocracias modernizadoras do “Terceiro Mundo”, e que tinham a França e seus intelectuais como referência central para se pensar em temas como a revolução e o fim do capitalismo. Naturalmente, fui muito influenciado pelo estruturalismo-marxismo – a corrente hegemônica nesses centros de pesquisas – em particular, as tradições veiculadas por Althusser. Yves Goussault, antigo membro do Partido Comunista, e um intelectual althusseriano muito ético e amável, era personagem de destaque no debate da época no IEDES. Também, eram personagens importantes no instituto: Alain Touraine, Michel Gutelman (referência na reforma agrária), Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. As aulas de Nicos Poulantzas, sociólogo estrutural-marxista grego eram muito disputadas. Fui seu aluno e como muitos outros ficamos chocados com seu suicídio e do modo como este ocorreu.
Ao visitar um amigo na Torre Tolbiac, enquanto o amigo foi a cozinha buscar um pouco d’água ele se lançou pela janela tendo em mãos grande parte de sua obra. Com o colega da Unicamp, Décio Saes, fui a seu enterro em Paris. Um evento multicultural e paradoxal. Lembro-me de uma cena inesquecível, de que me fez entender as fraturas de Poulantzas: de um lado da tumba, companheiros que homenageavam Poulantzas pelas palavras militantes da pensadora marxista Maria-Antonietta Macciocchi; de outro, os familiares e amigos próximos, liderados pela presença majestosa de um sacerdote da Igreja Ortodoxa Grega. No IEDES, também circulavam os nomes de C. Bettelheim, grande pensador marxista e consultor de vários países que viviam processos de descolonização no “Terceiro Mundo”; de S. Amin, brilhante intelectual egípcio do tema do desenvolvimento; e de Arghiri Emmanuel, grande teórico das trocas desiguais. A morte de Poulantzas e, posteriormente, a tragédia de Althusser que assassinou a própria esposa, me trouxeram crescentes dúvidas sobre o determinismo estruturalista e a razão última da Economia. A dimensão simbólica, política e ética do trabalho intelectual começava a me inquietar o que me levou a outros questionamentos e a uma ruptura progressiva com o estruturalismo marxista. A aproximação com as ideias de Gramsci e de sua visão cultural do capitalismo foram um momento importante nessa transição epistêmica.
NT: Depois disso, você fez, academicamente, um segundo retorno à França.
PHM: Retornei à França, em 1988, onde permaneci até 1991, período em que realizei novo doutorado (o Nouveau Régime), que redundou na tese Os intelectuais e o mito do desenvolvimento na América Latina: o caso do Brasil.
A França estava muito mudada nos planos político e intelectual e eu também buscava me conectar a novas ideias. Os exilados tinham retornado e a flor rosa socialista de Mitterrand começava a empalidecer. O estrutural- marxismo, que tinha me inspirado anteriormente, estava em pleno declínio e o pensamento francês se deslocava sob as novas narrativas intelectuais e teóricas: a filosofia analítica, a psicanálise e a linguística impactavam nos novos desenvolvimentos conceituais e na virada epistemológica que avançavam na revalorização da linguagem comum. Houve, nos anos 1980, o crescente reconhecimento de autores que vinham buscando, desde os anos 1960, novas leituras das Ciências Sociais fora da esfera estruturalista. M. Foucault deslocou o foco do historicismo moderno, realizando um trabalho arqueológico importante para elucidar uma série de enunciações discursivas centrais para o projeto da Modernidade; E. Morin se empenhava na organização de um método complexo que dialogasse entre os campos da sociologia, da biologia e da cibernética; J. Derrida passava a ser reconhecido pelos esclarecimentos sobre a importância da escrita na organização do pensamento propondo um método desconstrucionista da linguagem; G. Deleuze e F. Guattari abriam novos caminhos para a filosofia dos acontecimentos atualizando a pratica da criação de conceitos sobre as possibilidades, como o fez antes Nietzsche e Bergson; C. Castoriadis passava a ser reconhecido pela revalorização do debate sobre criatividade, imaginário e política. Com C. Lefort, ele tinha desenvolvido importante crítica ao totalitarismo na revista Socialisme e Barbarie, que ajudou a valorizar a filosofia política; P. Ricoeur enriqueceu os estudos hermenêuticos e fenomenológicos a partir de um diálogo importante com a tradição da filosofia analítica inglesa.
A lista de autores é longa, embora no que diz respeito à minha esfera pessoal, esses e outros autores franceses foram de muita relevância. O importante a assinalar é que a “virada linguística”, ocorrida entre os anos 1970 e 1980, teve impacto importante na relação entre filosofia e Ciências Sociais, abrindo perspectivas analíticas importantes para o desenvolvimento do pensamento crítico. A importância dessa virada epistemológica ganhou força na medida em que os ventos da sociedade global sopravam sobre as diversidades culturais e históricas e sobre a importância da “luta dos homens” (expressão cara a Lefort na sua crítica ao estruturalismo antropológico). A contestação da Modernidade como uma narrativa linear avançou para uma crítica mais ampla da própria natureza da filosofia mercantilista que funda a doutrina capitalista e liberal, como vimos na emergência do MAUSS (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais) que surgiu em 1981, e cuja associação edita, até hoje, a Revue du Mauss. Esse movimento buscava dois objetivos: a crítica ao mercantilismo e ao liberalismo e o resgate das criticas antiutilitaristas que M. Mauss desenvolveu, sobretudo, a partir dos estudos sobre a dádiva. A atualização da obra de Mauss se deve a um grupo de jovens intelectuais da época, entre os quais deve ser lembrado A. Caillé. Deve-se salientar, igualmente, que a circulação de ideias abriu o campo francês para um diálogo mais intensivo com as produções intelectuais alemã, inglesa e norte-americana. Passaram a ser traduzidos para o francês, com mais intensidade, autores renomados como Habermas, Giddens, Goffman, entre vários outros. Isto é um grande acontecimento quando observamos que, até os anos 1970, intelectuais como Max Weber eram ainda pouco traduzidos na França. Nesse novo período de estudos na França, frequentei as aulas: de A. Touraine, que buscava apoio em Freud para aprofundar seus estudos sobre os novos movimentos sociais; de C. Castoriadis que reunia conhecimentos da economia, da psicanálise e da sociologia para avançar na crítica à “instituição imaginaria da sociedade” e; de A. Caillé, fundador do movimento antiutilitarista em 1981, atualizando a crítica antiutilitarista a partir do dom. Por feliz coincidência, tive oportunidade de me aproximar de Caillé de quem sou amigo, até hoje. Ele é um intelectual militante muito comprometido com a crítica antiutilitarista e com a promoção do legado de Marcel Mauss, sendo, sem dúvida, um dos grandes nomes da sociologia francesa, na atualidade. Tive a chance rara de vir a residir no seu apartamento – que era uma vasta biblioteca com todas as produções representativas do pensamento antiutilitarista – que me foi alugado quando ele se mudou para um apartamento maior, logo após seu casamento. Pierre Bitoun, irmão do geógrafo Jan Bitoun, amigo comum, fez o contato e assim passei a conviver mais de perto com o ex-assistente de C. Lefort quando este ainda ensinava em Caen. Passei, desde então, a colaborar com o MAUSS tendo sido indicado mais adiante para ser um dos seus vice- presidentes. Esse retorno à França, em 1988 e que durou até 1992, me abriu um novo entendimento sobre a ideia de desenvolvimento e teve influência sobre os rumos da minha tese de doutorado. Adotando uma perspectiva antiutilitarista pude me afastar de um entendimento historicista e mecânico da modernização brasileira, muito inspirado pelo estrutural-marxismo; para entender o papel visceral dos intelectuais na produção de utopias do desenvolvimento, na modernização do aparato estatal e na justificação dos discursos sobre o poder. Tive, portanto, essa influência do movimento antiutilitarista francês e europeu que contribuiu para repensar meu entendimento do “desenvolvimento capitalista” no Brasil e me abrir para o pensamento pós-colonial e crítico latino-americano.
NT: Como toda essa crítica se articula, na sequência, com a sua própria experiência no Brasil e na América Latina?
PHM: A crítica ao capitalismo que fazem os anti-utilitaristas é, antes de tudo, moral, isto é, ela busca esclarecer que o capitalismo antes de ser um processo econômico voltado para o interesse material e para a acumulação, é uma doutrina moral inspirada pelo mercantilismo inglês e que se tornou hegemônica a nível global. Logo, o capitalismo não é uma máquina pré-humana que se reproduz, desde sempre, e incessantemente ao longo de um trajeto histórico linear que teria começado na Grécia e ganho seu esplendor com o ocidentalismo europeu. O desenvolvimento da crítica antiutilitarista permite compreender que o eurocentrismo constitui um projeto histórico específico, que se funda em uma filosofia moral utilitarista, a mercantilista e colonialista europeu. Tal observação é importante, pois, contribui para esclarecer que sendo o capitalismo um projeto histórico e cultural específico (o que já foi igualmente observado por um antiutilitarista famoso, K. Polanyi), ele pode ser objeto de crítica e de desconstrução cultural (isso, também, observado pelo antiutilitarista Gramsci). E é, igualmente, importante observar que a hegemonia da lógica mercantil não eliminou outras lógicas importantes da vida cotidiana como a da dádiva, fundada na equação dar-receber-retribuir, sistematizada por M. Mauss. Este explicava que no Ocidente, lógicas de solidariedade continuavam a existir, mesmo com a hegemonia dos interesses egoístas e mercantilistas. Nessa perspectiva, é relevante lembrar que a virada linguística na Europa e na França, desde final dos anos 1970, não apenas valorizou o papel da linguagem na construção do cotidiano, mas também estimulou a crítica moral que vemos florescer no antiutilitarismo francês, na teoria da justiça nos Estados Unidos (Walzer), na filosofia moral no Canadá (Taylor) e na Alemanha (Habermas) e, por conseguinte, na sociologia moral de A. Honneth. Temos, hoje, no interior do pensamento do Norte, enfim, uma crítica moral importante que é fundamental para se avançar na desconstrução do capitalismo como projeto cultural. Mas tal crítica moral, também, tem limites quando não se articula corretamente o tema do capitalismo com aquele da colonialidade na medida em que a expansão do capitalismo associado ao cristianismo e ao militarismo teve impactos importantes em outras sociedades e culturas, apagando memórias e produzindo escravidão de povos. E as reações ao capitalismo, hoje, nascem dessas culturas não- europeias que foram atingidas pela expansão colonial; e tais reações políticas e culturais atingem o coração da Europa por dentro (pelos imigrantes) e por fora (pelos movimentos sociais e culturais anticoloniais), ameaçando sua hegemonia cultural. Ou seja, a crítica pós-colonial do pensamento do Norte se volta para a desconstrução moral da Modernidade Ocidental, mas não toca nos fundamentos da colonialidade do ser, do saber e do poder, que foi central para a afirmação material e cultural do capitalismo, a nível planetário. O reconhecimento da estreita associação entre capitalismo e colonialidade está no centro das reações ao eurocentrismo que se fazem a partir de fora da Europa e mesmo dentro da Europa. Apenas um pensamento sistematizado a partir do entendimento do caráter sociológico das fronteiras culturais pode contribuir para que esta crítica moral do capitalismo se torne uma crítica cultural e política mais contundente, liberando outros saberes e utopias.
NT: Como se deu efetivamente a sua aproximação e o seu engajamento com a ALAS?
PHM: Eles aconteceram a partir de um convite do colega José Vicente Tavares, que organizou o congresso da ALAS em 2005, em Porto Alegre, para que eu atuasse como um dos coordenadores do GT-Pensamento Latino-Americano. Essa experiência me abriu um mundo amplo de contatos e de reflexões teóricas sobre a problemática latino-americana que eu não tinha ainda vivenciado. Como brasileiro, a minha visão de América Latina hispânica era a de um conjunto de países que não somente compartilhavam a mesma língua, mas que praticavam um importante e generalizado intercâmbio cultural e acadêmico. A América Latina (não brasileira) parecia se constituir em um mundo homogêneo e, por falta de experiência, era difícil descobrir suas diferenças e particularidades e entre as que delimitam a América do Sul, a América Central, o Caribe e a América do Norte. Superar essa imagem superficial da unidade cultural e descobrir a América Latina como um mosaico cultural muito rico, foi importante para entender que a colonialidade do saber significa, igualmente, compartimentalização de instituições, publicações e formação de públicos acadêmicos particulares. Ao mesmo tempo, percebi que apesar da comunicação fragmentada, os campos acadêmicos nacionais compartilhavam de certa experiência de colonialidade intelectual com relação à colonialidade do saber e à dominação do pensamento eurocêntrico. Os currículos acadêmicos em Ciências Sociais, apontando a teoria social do Norte como base para a formação dos intelectuais do Sul denotam a colonialidade. Não que tais saberes sejam inadequados, mas simplesmente que o modo de sua transmissão se fazendo pela desvalorização do contexto e dos saberes locais, termina constituindo importante dispositivo de colonialidade do saber acadêmico. Eleger as Ciências Sociais europeias como sendo o berço da interpretação principal sobre a realidade social, independentemente das diferenças culturais e históricas que delimitam a produção dos imaginários intelectuais, significa reproduzir a visão eurocêntrica do mundo. Assim, na ALAS pude descobrir que existe uma América Latina como subsistema histórico global que se desenha sob as diferenças particulares das sociedades nacionais. Conhecemos pouco da Bolívia ou do Suriname, ou da República Dominicana, por exemplo, e esta mesma ignorância observei em colegas argentinos, chilenos e mexicanos. Do mesmo modo, no meu imaginário, a América Latina se limitava a América do Sul e América Central, vista como um fenômeno integrado.
Tampouco entendia que o México não fazia parte da América Central, mas que é a América do Norte da América Latina. O contato com as realidades latino- americanas nos revelam a complexidade da América Central expressa, por exemplo, na diversidade de experiências históricas de dois países vizinhos como Costa Rica e Nicaragua ou, então, na diferença entre América Central e Caribe (que também se conhecem pouco, como pude perceber nas minhas viagens por essas regiões). Hoje, vejo que os novos países, que constroem a América Central, são totalmente distintos, como por exemplo: Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Guatemala e El Salvador Se os cientistas sociais dessa região conhecem pouco a própria América Central, muito pouco eles conhecem do Caribe. Este, por sua vez, que é uma fronteira cultural importante da colonialidade com presenças dominantes do francês, do inglês, do espanhol e do holandês, além do creoule, continua a ser um mistério para muitos caribenhos. Porém, esta diversidade e mesmo desconhecimento da América Latina e Caribe não constitui um impedimento ao entendimento da região como sub-sistema global. Este aspecto é importante a ser assinalado para não reforçar uma leitura tradicional – e colonial – que a unidade da região se daria apenas pela dominação das línguas colonizadoras. O que sustento, apoiado na observação empírica das diversas realidades, é que a ocidentalização do mundo gerou na região um sentimento coletivo compartilhado, de caráter cultural e político, acerca do papel da colonialidade na criação de uma exploração econômica secular que gerou muito sofrimento e humilhação moral. A crítica pós-colonial tem contribuído para desenvolver uma reação coletiva voltada, por um lado, para resgatar memórias e tradições e, por outro, para produzir novas utopias. No livro que publiquei, em 2012, intitulado A América Latina e a heterotopia de uma comunidade de destino solidária, procuro ressaltar os aspectos sociológicos dessa reação anticolonial. Ou seja, a perspectiva de um pensamento crítico latino-americano uniforme é polêmica, mas não é infundada.
NT: Interessante você colocar essa questão da partilha de sentido ou sentimento coletivo; mas ainda assim, essa uniformidade é aparente na medida em que o pensamento crítico latino-americano também é recheado de controvérsias; o que, no entanto, não lhe retira, em nada, a sua pertinência e relevância, em uma atualidade na qual se percebem “sismos” significativos acontecendo no seio do pensamento canônico ocidental, ao menos, ao que me parece, no domínio das Ciências Sociais.
PHM: Trata-se de um pensamento heterogêneo em termos de comunicação acadêmica e de articulação dos movimentos sociais, mas que compartilha uma origem histórica que motiva a sua força como projeto coletivo, E isto se revela pelo impacto da colonialidade europeia sobre os povos desta região ou sobre os povos escravizados ou migrantes e pelas reações anticoloniais que emergem progressivamente no plano do trabalho intelectual e das reações sociais e comunitárias. O campo intelectual é relevante para se refletir sobre a reação sistêmica anticolonial que atravessa as formações discursivas e os inconscientes coletivos apesar das fragmentações institucionais. Quando nos detemos na sociologia, por exemplo, observamos que cada campo intelectual nacional se organiza a partir de certos autores clássicos, cuja originalidade se revela não por exercitar com competência as teorias do Norte, mas, diferentemente, por demonstrarem sensibilidade aguda para entender que tais teorias teriam que passar pelo filtro da contextualidade do saber, liberando entendimentos particulares da colonialidade. No Brasil, autores como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e outros revelam essa sensibilidade de fronteira, assim como são os casos de José Marti, em Cuba; Fals Borda, na Colombia; Enzo Faletto, no Chile; Pablo Gonzalez Casanova no México; entre outros. Também, é curioso observar que certos autores recebem méritos diferentes dependendo dos países. É o caso de Paulo Freire que é visto, sobretudo, como um pedagogo no Brasil, mas que tem o reconhecimento de um grande sociólogo, nos demais países latino-americanos. Nos parâmetros brasileiros, Paulo Freire não é tido como sociólogo, mas como pedagogo. Então, é curioso observar como cada sociedade inspira sua produção sociológica e seu pensamento crítico, revelando as particularidades das zonas de tradução e de interpretação da realidade. Mas, é igualmente interessante observar que os temas e saídas teóricas tendem a revelar processos de interpretação coletivos supranacionais e sistêmicos.
Na ALAS, observei igualmente que além das culturas acadêmicas diferentes, há campos intelectuais mais estruturados que outros. Na ALAS, argentinos, brasileiros e mexicanos têm uma tradição importante na produção do que seja uma sociologia propriamente latino-americana, mas não se pode negligenciar os lugares dos peruanos, dos colombianos, dos chilenos, dos venezuelanos, dos costarriquenses e dos cubanos. O Brasil já teve mais proximidade com a sociologia regional latino-americana entre os anos 1950 e 1970, quando prosperava o debate sobre estruturalismo econômico, imperialismo e dependência, mas perdeu muito de sua presença na cooperação acadêmica latino-americana nos anos 1980, por razões já lembradas, em particular os rumos do desenvolvimento da pós- graduação no país, com ênfase na aproximação com Europa e Estados Unidos.
NT: Você foi presidente do ALAS recentemente, entre 2011 e 2013, e esteve visitando alguns países latino-americanos e do Caribe, dialogando com diversos pesquisadores desses países: como você vê a inserção do pensamento brasileiro na América Latina? Até a poucos anos atrás, era tímida a participação de pesquisadores brasileiros em fóruns acadêmicos latino-americanos (evidentemente, falo pensando apenas no campo das Ciências Sociais).
PHM: Fui eleito membro da Diretoria da ALAS, em 2007, a convite do José Vicente Tavares, durante a reunião do México. Em 2008, fizemos um Pré-Alas em Recife, que foi um evento importante para divulgar a Associação no Nordeste e no Brasil. Fui eleito presidente no mandato de 2011- 2013. Tivemos a chance de realizar um grande ALAS no Brasil, em 2011, voltado para explorar as Fronteiras Atlânticas da América Latina que, no meu entender, contribuiu para mudar a imagem da ALAS no Brasil e para estimular a aproximação de pesquisadores brasileiros com o pensamento latino- americano. Contribuiu para incrementar a cooperação e estimular vários grupos de pesquisas no Brasil, que passaram a estudar mais a América Latina, a partir daí. A ALAS no Recife foi um grande campo de diálogo, interações e descobertas, com a participação de mais de cinco mil pessoas. Abriu-se, então, um campo de diálogo fantástico porque uma questão fundamental, para nós, era a de mostrar que a ALAS era uma associação séria. Explico: nos parâmetros científicos brasileiros, a ALAS não era considerada uma instituição séria por não ter os mesmos critérios (em termos burocráticos) que a ANPOCS e a SBS, por exemplo. A ALAS não tem critérios burocráticos porque nela coabitam várias culturas acadêmicas, o que faz com que ela tenha um nível de espontaneidade maior do que as associações científicas brasileiras; também, por não haver um direito internacional que prescreva a existência da ALAS como pessoa jurídica. O congresso ALAS, em Recife, em 2011, mostrou que essa associação tinha uma importância profissional e científica muito relevante para o Brasil. Em 2013, no Chile, essa importância foi consagrada com a presença maciça de pesquisadores brasileiros: dos 5.000 mil participantes, pelo menos 2.300 eram brasileiros, demonstrando ser essa uma ocasião de intercâmbio impar para o desenvolvimento do pensamento crítico latino-americano. Hoje, nós temos aqui em Pernambuco e nos demais estados do Nordeste vários grupos de pesquisas voltados para a América Latina e Caribe. O desejo em se realizar pesquisas comparadas cresceu muito.
Portanto, atualmente, temos um campo de conhecimento importante sobre a região, sendo a ALAS um centro para a liberação de um pensamento institucional mais democrático. Ela tem contribuído para divulgar importantes pesquisas sobre os movimentos sociais na região e para divulgar novas teses de ponta, como aquelas das intersubjetividades, dos corpos e emoções, a exemplo dos estudos realizados pelo colega argentino Adrián Scribano. Ele é o grande promotor da discussão do tema, inclusive na ALAS, trazendo a sociologia para discutir a natureza corporal e as emoções humanas. Há, igualmente, outros intelectuais pensando a questão da democracia, a questão da classe trabalhadora, dos movimentos feministas, das questões urbanas, entre outros temas.
NT: Você próprio tem publicações no tema da (de)colonialidade e pós-colonialidade. Qual é o foco de sua discussão?
PHM: No meu livro La América Latina y la heterotopia de una comunidad de destino solidaria (2011) exploro três níveis de pós-colonialidade. O primeiro que chamo de pós-dependentista, é quando se consegue começar um pensamento ensaístico sobre as ex-colônias, mais marcado pela geografia: temos, aí, entre muitos intelectuais latino americanos, Gilberto Freyre trabalhando sobre a civilização do açúcar; Fernando Ortiz em Cuba também abordando a questão do açúcar; José Martí, valorizando uma crítica antiutilitarista desde a América Latina. Enfim, todo um pensamento ensaístico voltado para cartografar os recursos naturais, a miscigenação cultural, as peculiariadades da vida colonial. O ensaísmo do período pós- independentista é fundamental para o desenvolvimento da sociologia profissional.
O segundo período é o da sociologia profissional. Nesse período que engloba os anos 1940 até 1980, vemos a emergência de cursos de Ciências Sociais e Sociologia nas Universidades latino- americanas. A sociologia profissional surge em paralelo ao aparecimento de instituições importantes na região como a CEPAL, o CLACSO e a própria ALAS. O terceiro momento é o do aprofundamento da sociologia acadêmica com o desenvolvimento das pós-graduações e da pesquisa acadêmica, a partir, sobretudo, dos anos 1970. Neste período, o pensamento latino-americano, teórico e prático, tanto conhece processos de recolonialidade, a partir do advento do neoliberalismo; como, no lado contrário, processos de descolonialidade a partir da emergência da crítica descolonial impulsionada por autores como Quijano, Escobar, Casanova, Santos, Lander, entre outros.
NT: E qual foi o papel do movimento cepalino do pós-guerra na emergência do pensamento crítico pós-colonial?
PHM: O grande mérito da CEPAL foi o de trazer para o plano da política, desde final dos anos 1940, um tema que era considerado apenas da Economia, o das trocas internacionais. Nasce daí o reconhecimento da importância do Estado na regulamentação da economia, mediante políticas públicas voltadas para organizar o mercado interno, a reforma agrária, entre outros. Com Celso Furtado, tem-se um pensamento estruturalista crítico, profissional, formado, sobretudo, por economistas, que vai influenciar anos mais tarde, na fundação da teoria da dependência. Com os dependentistas, o tema das trocas internacionais e da dependência é aprofundado, contribuindo para politizar ainda mais a questão já colocada pelos cepalinos, trazendo para o debate os temas das alianças entre capital estrangeiro e nacional, das lutas de classes, entre outros.
Então, há um pensamento independentista acadêmico latino- americano original que começou a questionar mais profundamente ao nível da política, da organização dos partidos e dos sistemas sociais o tema da colonialidade. Esse pensamento acadêmico crítico tem, na academia, impacto sobre os rumos da sociologia do desenvolvimento, questionando a organização da reforma do Estado, a formação do quadro burocrático profissional, do planejamento estatal de longo prazo. A sociologia profissional inspirada pelas discussões sobre imperialismo e dependência avançou nos estudos da organização da nação, da política e da democracia, dos movimentos sociais, revelando a força de um movimento intelectual crítico, que extrapolou as fronteiras da academia, para inspirar os movimentos da sociedade civil. Desse debate se nutriram instituições importantes como a Igreja progressista, os sindicados, o movimento campesino, o movimento estudantil, entre outros.
NT: Há todo um transbordamento desse movimento do campo puramente acadêmico para diversos setores na sociedade…
PHM: Não é por acaso que as mudanças da sociedade civil e política na América Latina tanto inspiraram Touraine na sua teorização sobre novos movimentos sociais. De fato, esta região é talvez o lugar de maior reação social à colonialidade eurocêntrica no século XX. É aí que se veem novos movimentos sociais influenciados por um pensamento crítico de esquerda, em expansão. Este não é um acontecimento histórico aleatório, estando conectado à tomada de consciência progressiva sobre os efeitos danosos do colonialismo sobre as culturas locais e sobre as tradições e memórias. O crescimento das mobilizações coletivas acompanhou a passagem de um pensamento pós- colonial profissional para o pós- colonial crítico que avança com a tese da desconstrução do discurso da colonialidade, e que passou a ser conhecido como pensamento descolonial. As mudanças nos currículos acadêmicos vêm refletindo esta passagem para um pensamento descolonial, permitindo o avanço para um pensamento mais radical do ponto de vista de desconstrução e reconstrução das ideias, em vários níveis: das crenças intelectuais, dos rumos da organização do mundo, do corpo, extrapolando para o tema das emoções, dos sentimentos, para o tema das subjetividades.
Agora, o pensamento decolonial, por sua vez, tem dois momentos: tem o primeiro momento, em que pensamento decolonial é mais ligado à questão geográfica – a Europa e fora dela; e há outro momento em que se supera o determinismo geográfico para liberar uma crítica mais simbólica e cultural. A tese de Walter Mignolo sobre a importância de ruptura epistêmica com autores do Norte (como Foucault) revela esta confusão sobre a natureza da colonialidade. Mas isto vem sendo revisto, inclusive, pelo próprio Mignolo. Pois a ruptura epistêmica com o eurocentrismo (o pensamento europeu) não pode ficar limitada a uma questão geográfica, devendo ser incorporada uma reflexão mais ampla da colonialidade que revele as fronteiras simbólicas invisíveis do ocidentalismo e das reações a este, como o vemos atualmente nas teorizações de Anibal Quijano sobre colonialidade do poder ou de Boaventura Santos sobre a ecologia de saberes. Também, agregaria a estas propostas aquela que formulei sobre a América Latina, não como comunidade de origem, mas como comunidade de destino. Esses são os exemplos de uma revisão epistemológica importante que, sem negar os saberes do Norte, busca revelar as potencialidades dos saberes do Sul. Mas a tarefa é árdua, quando se considera que a colonialidade do saber está muito presente no imaginário universitário latino-americano, ainda muito amarrada pelos campos disciplinares, pelas domesticidades acadêmicas. Vejo, nesse sentido, um maior avanço, desde o fim dos anos 1990, em se repensar a colonialidade não só em termos geográficos, mas o de entender e aprofundar melhor a questão dos contextos, do local e da diversidade, trazendo questões étnicas, de gênero, da violência ecológica, entre outros temas.
NT: Que distinção você crítico decolonialista pensamento crítico pós-colonial, mais disseminado por pensadores indianos (Spivak, Bhabha, Guha…)?
PHM: Para ser rigoroso, o pensamento pós-colonial surge com os processos de independência nacionais. Nessa perspectiva, podemos nos referir a reflexões pós-coloniais na América Latina, desde o século XIX, enquanto na África e Ásia eles surgem no século XX. No entanto, e nos limitando ao caso da América Latina há que se diferenciar aquele pensamento pós-colonial mais ensaístico, voltado para descrever originalidades geográficas, culturais e raciais, dominante até a terceira década do século XX, daquele outro pensamento que passa a questionar o imperialismo, a defender o fortalecimento do Estado em contexto de incipiente sociedade civil com vistas à implementação de políticas econômicas e sociais transformadoras da realidade histórica nacional. Aqui, sem dúvidas, há que se fazer referência à CEPAL que constitui um divisor de águas no pensamento pós-colonial, pois a partir daí se observa a emergência de uma sociologia crítica mais efetiva na análise dos sistemas de poder nacionais e das lutas pela democracia.
É igualmente interessante fazer uma reflexão comparativa entre o pensamento pós-colonial latino-americano e o indiano. A crítica indiana não polemiza e problematiza o tema do imperialismo; ela questiona mais os temas culturais e políticos, da reconstrução da nação e da democracia de uma sociedade tradicional violentada pela colonização inglesa.
Já o pensamento latino-americano, no meu entender, é mais profundo, porque ele problematizou, desde a CEPAL, o tema do imperialismo. Aí, a discussão sobre a pós-colonialidade e a crítica ao eurocentrismo não se limitam a uma crítica voltada para a memória e a tradição violentadas, como nós observamos na Ásia ou na África, embora não se possa negligenciar a violência colonial sobre os povos indígenas da América Latina. Aqui existe, também, essa tradição violentada. Por exemplo, o pensamento Maia é uma tradição milenar que foi violentada. Porém, na América Latina, além desta ideia da violência de uma memória, há também a problematização do imperialismo como sendo uma articulação do capitalismo com a colonialidade. Então, desde algumas décadas, esse pensamento crítico radical vem se aprofundando, permitindo que do pensamento pós- colonial crítico surja um pensamento descolonial que aprofunda a crítica teórica a partir de um profundo trabalho de desconstrução das crenças gerais do eurocentrismo. O trabalho de desconstrução visa, por exemplo, as crenças científicas a respeito de certo universalismo europeu que pressupõe uma hierarquia moral na qual as demais culturas são vistas como expressões particulares e menores deste universalismo. O trabalho de desconstrução busca, igualmente, desnudar a crença ilusória da primazia do econômico na organização da vida social, ou a crença da superioridade da racionalidade cognitiva sobre a racionalidade emocional.
Uma referência central para o avanço do pensamento descolonial é o autor mexicano Pablo González Casanova que ao se reportar ao tema da democracia no México avançou a tese da colonialidade interna que constitui um padrão de poder que reproduz a colonialidade externa. São muitos os autores que fizeram elaborações importantes para o avanço da crítica descolonial. Aqui, penso eu, há uma politização importante que não se pode perder de vista: um pensamento crítico que avança a partir de uma crítica ao imperialismo e às suas formas. Há um texto clássico de R. Prebisch que é marco nos estudos da CEPAL que toca o tema da passagem da colonialidade do imperialismo europeu para o imperialismo norte-americano e o seu impacto sobre as sociedades periféricas. Esse texto é um preâmbulo nessa discussão que caracteriza a particularidade de um pensamento pós- colonial na América Latina e como ele avança para uma crítica radical que vai tocar na questão da decolonialidade. Então, o primeiro momento da decolonialidade, ele é mais geográfico: nós aqui da América Latina e eles da Europa. O segundo momento da crítica decolonial é mais profunda, mais epistêmica; é mais epistemológica, mais profissional. Constata-se igualmente que a colonialidade não está só na América Latina; também, houve a colonialidade na Europa: a humilhação das mulheres, a questão dos imigrantes, humilhação das crianças, isto é, houve um forte processo de colonialidade para assegurar a dominação da sociedade patriarcal. E, no terceiro momento (atual), o pensamento pós-colonial se desdobra entre uma vertente recolonizadora, influenciada pelo neoliberalismo e, outra, descolonizadora, que questiona os fundamentos do neoliberalismo. Por isso, e para evitar que a recolonialidade do saber pelo neoliberalismo torne as Ciências Sociais desnecessárias, o debate tem que avançar por uma crítica mais radical no seu interior, para liberá-la de seu comprometimento moral com o projeto da modernidade eurocêntrica, que está se esgotando neste momento.
NT: Há textos de autores como Edgardo Lander e Ramón Grosfoguel, só para citar uns, que discutem a trajetória e o estado de arte atual das Ciências Sociais na América Latina. Esses autores constatam que as Ciências Sociais na América Latina se estruturaram de tal modo a reproduzir o pensamento eurocêntrico; atreladas a uma matriz de saber e reproduzindo de um modo e outro a colonialidade do saber. Ponderam sobre a dificuldade de um avanço na medida em que este depende de um profundo questionamento da estrutura acadêmica, a que fomos submetidos, e a qual, em muitos aspectos, bloqueia a própria produção de um pensamento mais autônomo. O foco de E. Lander é o sistema acadêmico venezuelano, estendendo a análise ao conjunto da América Latina. Como você vê o caso brasileiro? Temos um território grande, com uma multiplicidade de universidades diferentes, dificultando a apreensão dos tipos de pensamento sendo produzidos. Além do mais, estamos cada vez mais especializados, disciplinarmente falando: divisões de áreas que estão bem refletidas na própria estruturação dos comitês de áreas da CAPES – sociologia, antropologia, ciência política – que terminam por colocar fortes demarcações no próprio modo de produzir o conhecimento.
PHM: Penso que o Brasil é um caso interessante, porque houve um grande avanço da pós-graduação, desde os anos 1970, inclusive, por iniciativa do regime militar; a CAPES e o CNPq – programas de desenvolvimento científico e tecnológico – se estruturam nesse período. Atualmente, se tomarmos só a Sociologia, no Brasil, veremos mais de 50 programas de pós-graduação, com mestrado e doutorado completos; se acrescentarmos os programas de Antropologia e de Ciência Política, atingiremos uma cifra maior que 100; e, se agregarmos, programas de História, Geografia e mais outras áreas das Humanas, chega-se a mais de 200.
Comparativamente, se tomarmos o conjunto dos demais países da América Latina, os programas de mestrado e doutorado completos em Ciências Sociais (não vou nem me ater apenas em Sociologia), não deve chegar a 30. Ou seja, só em Sociologia, o Brasil tem muito mais programas de pós- graduação que todos os demais países da América Latina. O México deve ter 6 ou 8 programas de mestrado e doutorado, a Argentina tem 6, o Chile tem 3 ou 4, o Equador tem 2, o Peru tem 2. Do ponto de vista quantitativo, diria que há sucesso dos movimentos das Ciências Sociais no Brasil, a partir dos anos 1970, confirmando a visão numérica do desenvolvimento das Ciências Sociais que foi pensada pelos economistas do regime militar. Por outro lado, se analisarmos a questão do ponto de vista do conteúdo programático, entendo que esta política de expansão dos cursos de pós-graduação, no Brasil, esconde um processo de recolonialidade do saber acadêmico, porque todos esses doutores, que se formaram e organizaram as pós- graduações, foram estudar no exterior, na Europa – Inglaterra, Alemanha, França – ou nos Estados Unidos, sendo atraídos fatalmente por epistemologias científicas eurocêntricas, que desdenham os saberes e práticas de fronteiras.
Então, houve uma recolonialidade do saber que fortaleceu uma visão disciplinar eurocêntrica das Ciências Sociais na análise do processo de mudança social do Brasil. Não que essas epistemologias sejam inadequadas. Não é esta a questão! O fato é que a aplicação literal dessas ideias estrangeiras, sem consideração dos processos de tradução linguístico e sem valorização dos filtros culturais leva necessariamente a erros de entendimento da realidade, com impactos negativos nos movimentos sociais e intelectuais. No momento, por exemplo, estamos presenciando esta impotência das Ciências Sociais e da Sociologia para dar conta dos desafios de explicação, tanto do modelo oligárquico colonial ai presente, como das perspectivas das reações anticoloniais. A ideia de classe social é insuficiente para explicar a natureza destes poderes de origem colonial, que se reproduzem pelos mecanismos organizacionais estatais e privados. Há, logo, que se repensar a “arqueologia do poder” em sociedades pós-coloniais.
Interessante é que as Ciências Sociais e a Sociologia, hoje, no Brasil, tornaram- se sofisticadas. Pensemos nas bolsas de pesquisa para estudantes: há muitas bolsas de mestrado e doutorado, atualmente, voltadas para assegurar o financiamento e a reprodução das Ciências Sociais. Pensemos no papel das associações como a ANPOCS, a SBS, a ABA…Tudo isso é muito sofisticado em termos de reprodução e produção do conhecimento. Então, o sistema acadêmico é como uma máquina auto-reprodutiva através, sobretudo, dos financiamentos volumosos para a área, sem se questionar seriamente sobre os usos e sentidos dos conteúdos apropriados e transmitidos. Não se pergunta claramente como esses conhecimentos estão sendo aplicados na vida social, nas instituições, seja no Governo, nas ONGS, nas Igrejas, e na própria Universidade com seus programas de extensão. O sistema científico e acadêmico termina ficando prisioneiro de metas menores – Freud diria, de pequenos prazeres – revelados por indicadores de publicações de livros e de revistas científicas ou de participação em congressos voltados para o público especializado, sem maiores questionamentos sobre os fundamentos epistemológicos das Ciências Sociais e sobre seu compromisso moral com a produção de verdades necessárias para a emancipação do ser humano, com relação a processos involutivos da vida social. O sistema termina se reproduzindo na sua própria impotência e fica deslocado das demandas difusas da sociedade com relação à sua libertação cognitiva, emocional e espiritual e aos anseios de igualdade e justiça social.
Então, nem sempre esses conhecimentos científicos e humanísticos estão conectados com a demanda social, que termina se mobilizando de uma forma caótica e mesmo autodestrutiva, por falta de um dispositivo de crítica social mais fecundo e atualizado. O papel do pensamento crítico deveria ser o de funcionar como biopotência, como espelho agudo da realidade: não uma realidade meramente positiva desenhada num tempo linear e num espaço aberto, mas de uma realidade de múltiplos tempos e dimensões culturais que se move pelas emoções, sentimentos, pelo desejo coletivo. Se fizermos, então, uma análise da aplicação desses conhecimentos herdados do eurocentrismo, eles são insuficientes para explicar as novas dinâmicas humanas. Um elemento revelador disso é a diminuição da venda de livros de Ciências Sociais. Em livrarias de aeroportos, a parte dos livros de Ciências Sociais é mínima. Nas grandes, como a Livraria Cultura, vê-se que a parte de autoajuda, tecnologia e informática é enorme e a parte de Ciências Sociais limitada. Isso demonstra que há uma dificuldade evidente de articulação do conhecimento crítico com as demandas de explicação da realidade.
Então, há de se repensar como esses conhecimentos podem ser readequados e aí entra a questão da decolonialidade do saber e a decolonialidade do poder acadêmico. Há um poder acadêmico colonizado e recolonizado, e há uma colonialidade do saber que se torna perigosa porque o sujeito acadêmico se torna inconsciente, sem referências sobre a realidade. Há questões que deveriam sempre ser colocadas em cada avaliação de teses, dissertações e artigos: esta reflexão espelha a realidade social, conectando o pensamento crítico com o pensamento prático? Como essa informação será usada na realidade social? Estas e outras questões são fundamentais para permitir que as Ciências Sociais não fiquem prisioneiras do fetiche dos financiamentos estatais, temendo que se faltarem financiamentos para as pesquisas e para a manutenção dessa máquina, o sistema possa ruir. Isso acontece porque o pensamento social não está mais ancorado na energia social de mudança, mas na reprodução formal do sistema acadêmico.
NT: Em meio a isso tudo, haveria linhas de fuga (sentido deleuziano) que buscam romper com essa prática acadêmica, intentando uma produção de conhecimento em estreita conexão com os saberes práticos das pessoas na sociedade.
PHM: O que eu disse antes sobre o conservadorismo das Ciências Sociais refere-se ao caso brasileiro; há outras perspectivas mais críticas na América Latina, tentando romper com essa colonialidade. Penso, inclusive, em países que nunca tiveram financiamento para pesquisas tão volumosos, mas que ousaram em criar alternativas de organização das atividades acadêmicas que fogem ao manual eurocêntrico; penso no caso das Universidades interculturais indígenas. Conheci pessoalmente esse formato de Universidade em El Alto na Bolívia e no distrito de Sinaloa, no noroeste do México. Há, nestas experiências, estruturas de ensino, diferentes dos nossos modelos tradicionais. Grande parte dos professores e monitores são lideranças indígenas em formação, sempre buscando articular a memória, a tradição e as particularidades culturais com a construção de um saber mais adequado para a cidadania da população indígena. Então, existem experiências em Universidades interculturais indígenas a serem consideradas.
Certamente, não se trata de propor a generalização de tal modelo; mas, de entender que na proposta original se estabeleça um questionamento da estrutura institucional, profissional e curricular das nossas Universidades, que foram criadas a partir do modelo cartesiano eurocêntrico. O importante nas Universidades indígenas é o fato que buscam resgatar a importância do contexto histórico, étnico e cultural na modelagem dos conteúdos que devem ser ministrados e refletidos pelos estudantes. Diversamente, entendo que o pensamento escolástico rígido, dividido em disciplinas que pouco se comunicam, termina fraturando o entendimento da realidade complexa, por parte dos indivíduos. Os modelos disciplinares de inspiração colonial terminam reproduzindo a sofisticação formal de certas crenças intelectuais e teóricas que, muitas vezes, são descoladas da realidade contextual e das demandas da sociedade, em termos de produção e divulgação de informações fundamentais e apropriadas para inspirar a mudança social. Então, essas Universidades indígenas deveriam inspirar o avanço da decolonialidade na perspectiva de uma ecologia dos saberes: valorizando um entendimento intercultural e complexo da realidade, no qual conteúdos e práticas pedagógicas contemplem, de modo dialógico, as diversas racionalidades presentes na organização da vida humana – a cognitiva, emocional, moral, estética e espiritual. Há uma fenomenologia do viver, na perspectiva indígena, que deveria ser mais considerada na revisão do sistema acadêmico tradicional de inspiração colonial.
NT: Nesses países onde se desenvolvem tais experiências (de Universidades indígenas) haveria traços, memória e tradição que as ancoram, muito embora tenha havido brutalidades e violências na colonização e uma tentativa de apagamento da memória. Quando se fala em Maias, Astecas e Incas, por exemplo, encontram-se, fortes traços dessas civilizações que se resgatam. No Brasil, parece ter havido um forte processo de apagamento ou de silenciamento – para falar como Eni Orlandi – das culturas originárias.
PHM: Você avançou um tema interessante, o de que as experiências das Universidades indígenas respondem a uma parte da crítica decolonial que tem a ver com os povos originários.
Você vai encontrar isso muito forte no Peru, na Bolívia, no Equador, na Guatemala e no México. Porém nos demais países da América Latina, há mais população de mestiços que exigiriam outros formatos de universidades descolonizadoras. Há casos, como o da República Dominicana, primeira terra onde chegou Cristovão Colombo, no qual as tradições étnicas ameríndias desapareceram. Há casos intermediários, nos quais as populações indígenas sobrevivem de modo periférico como no Chile e na Argentina. Há casos, como o brasileiro e o colombiano, nos quais a presença indígena está renascendo. De modo geral, há que se considerar haver na América Latina uma grande proporção de populações mestiças que reproduzem diferentes mosaicos culturais. No contexto de expansão do sistema universitário, voltado para “embranquecer” mentalidades, muitos indivíduos mestiços terminaram perdendo seus vínculos com as origens indígenas e africanas. E o trabalho de reorganização dessas memórias deveria ser objeto de uma reforma importante do ensino e da pesquisa acadêmica.
Os mestiços, na verdade, eles estão em uma encruzilhada de formação de um processo de decolonialidade, mas tem a ver com questões mais complexas: ele é africano, português, asiático, ameríndio. Mas ele não é mais que isso. É um mestiço étnico. É um híbrido cultural que traz a marca da colonialidade e as sementes da descolonialidade e de uma nova etnicidade. A decolonialidade passa por uma nova experiência de “racialidade” que rompe com o modelo europeu e colonial de raça para se abrir à multiplicidade étnica, cultural, linguística e estética.
NT: Nesse hibridismo não estaria também uma força desconhecida? O hibridismo não estaria, ainda mais, sendo facilitado, nos tempos atuais, pela mediação da tecnologia de informação e de comunicação? Nele, não estaria justamente o mote para se pensar em novas possibilidades?
PHM: Por um lado, de modo geral temos que reconhecer que a história do ser humano é a do hibridismo cultural. Por outro, não podemos negar o fato que a velocidade de informações, de migrações e de encontros culturais transnacionais contribui para criar novas e intensas representações ideológicas da vida. A crítica descolonial do fenômeno do hibridismo deve, em primeiro lugar, romper com a memória fascista do purismo racial. Em segundo lugar, deve considerar o quanto a experiência do hibridismo rompe parcialmente com as culturas nacionais para liberar o que Edgar Morin denominou de perspectivas de uma “cidadania planetária”.
O fenômeno religioso vem se transmutando rapidamente com as experiências híbridas e sincréticas na América Latina. No Brasil, por exemplo, temos como exemplo emblemático as igrejas do Acre como as do Daime, da União do Vegetal e da Barquinha que cultivam experiências sincréticas entre o catolicismo popular e o xamanismo indígena, ampliando o sincretismo anterior entre catolicismo popular e religiões africanas. No sincretismo colonial e pós-colonial, a sobrevivência das tradições africanas se fez por uma religiosidade afro-brasileira pela qual os orixás passaram, em vários momentos, a serem invocados por divindades católicas como, por exemplo, Nossa Senhora da Conceição que é a representação de Yemanjá. No novo sincretismo contemporâneo, tais representações sagradas são ampliadas pelas incorporações de divindades indígenas, como Janaina, e por uma série simbólica de caboclos da mata. Na verdade, esta reelaboração simbólica do sagrado não é um artifício produzido nos centros de culto e de celebração, mas espelham experiências híbridas de “caboclos”, da mata ou urbanos, que buscam atualizar suas tradições culturais mediante novas representações e vivências coletivas do sagrado.
No paradigma racionalista e laicista moderno, inspirado pelo biocartesianismo, homem e natureza foram representados como entidades separadas. O sagrado do ser humano estava mais próximo da razão teórica de Kant e de seu entendimento imanente da ética. Mas esta construção cognitiva nunca se universalizou e a colonialidade teve que conviver com a atualização das tradições mágicas e religiosas. A biomedicina clássica encontra limites no seio da própria medicina ocidental. Basta considerar o fato que a medicina psicosomática propõe que cerca de 90% das enfermidades têm fundo emocional.
O reconhecimento que a doença não se limita a um sintoma físico, mas que incorpora dimensões emocionais e mesmo mágicas, vem contribuindo para revalorizar outras tradições simbólicas. Nesse contexto de descolonialidade, naturalmente há dissociações culturais, por um lado; e novas experiências de hibridismo cultural e de sincretismo religioso, por outro, que se ampliam, dando margem para novos arranjos simbólicos e novas representações coletivas. Há efetiva revalorização das tradições simbólicas presentes em distintas sociedades humanas. O resgate das tradições mágicas traz consigo a revalorização de práticas xamânicas e de medicinas tradicionais baseadas nas plantas e nos rituais de consagração comunitários. Existem mais de 50 tipos de “plantas de poder” na Amazônia que são usadas ritualmente como medicinas.
NT: Você está exemplificando bem, aqui, o que você desumanização da medicina (2002). Trata-se de uma obra sua bastante referenciada no campo da Medicina Social no Brasil, também na Sociologia da saúde.
PHM: Efetivamente. A clínica médica, a que se refere Foucault, nasce numa disputa com a religião em torno do controle dos cuidados corporais. As reações científicas contra o misticismo religioso levaram a biomedicina a buscar avidamente evidências objetivas sobre a doença e a saúde para desvalidar os cânones da Igreja. E para sua expansão e hegemonia, o biocartesianismo médico buscou por todos os meios suprimir os fundamentos emocionais e espirituais da doença versus saúde, ao mesmo tempo em que se empenhou em organizar os manuais científicos, as instituições de saúde e a formação profissional. Mas, apesar dos esforços de objetivar o conhecimento científico, a Clínica Médica não conseguiu responder a um tema crucial do viver que é o morrer. Bem ou mal, os sacerdotes enfrentavam o dilema do morrer e do pós-morte, aceitando os limites da vida. Sobre esse tema, a medicina moderna se calou, limitando-se a desenvolver tecnologias de prolongamento da vida. As dificuldades epistemológicas de lidar com os limites da vida, inclusive emocionais e espirituais, terminaram contribuindo para a emergência de uma biomedicina materialista, tecnicista que desvaloriza os antigos rituais sagrados relativos ao morrer. Na aplicação dos sistemas medicinais antigos, percebe- se que há uma correlação importante entre a experiência pessoal com as enfermidades e a capacidade do curador exercer sua função como medicine- man. Há, então, uma compreensão da natureza, inclusive corporal, que é mais complexa por considerar seus elementos mágicos e energéticos.
NT: Nessa última parte de sua fala, há uma defesa de abertura da ciência: ela deve, na perspectiva do hibridismo, estar aberta não só para repensar aquilo que está sendo produzido de uma forma reprodutiva, há muitos anos; mas também, pensar na migração de conhecimentos que eu diria “mundanos” para o “solo sagrado” da ciência. Eu estou entendendo o seu último desenvolvimento nesse sentido. Parece-me, assim, que a sua proposta vai muito ao encontro do que a perspectiva decolonial tem defendido nos termos de pensamento fronteiriço. Nesse caso, não se trata de pensar a prática científica de “dentro para dentro” ou “dentro para fora” somente, mas também, de “fora para dentro”.
PHM: Isso você tem que vivenciar, contatar os saberes de fronteira. Como é que você vivencia o poder da diferença, o poder que emerge na diferença de gênero, sexualidade e etnia? Que na verdade não é o poder, mas uma relação de poder.
E se pensarmos a questão da relação com as crianças e idosos. Como se lida com os idosos? Na sociedade de consumo, os idosos significam fracasso ou morte. Eles mesmos se colocam nestas posições e todos ficam paranoicos lutando para não morrer. Todos, querendo permanecer vivos e podendo consumir. O que é o contrário das tradições culturais anteriores, que valorizavam os mais velhos sendo estes a referência da memória e tradição. Então, há uma esquizofrenia nessa experiência de decolonialidade na vida cotidiana. O intelectual acadêmico se encontra ainda aprisionado em um campo de ideias que não incorporam com clareza a dimensão da ritualização que é fundamental para se resgatar a ordem simbólica implícita da vida cultural comunitária. Poucos intelectuais estão conseguindo articular a mudança do pensamento com a mudança na prática.
Acho, portanto, que a crítica tem que ser mais radical do ponto de vista cultural e da cultura intelectual. Então, a crítica decolonial não é mais uma crítica só geográfica dos povos que foram colonizados pelos europeus, mas ela penetra nos processos linguísticos e simbólicos de produção dos saberes e poderes, na crítica à maquinização dos corpos e pensamentos. Isso é particularmente importante para a crítica ao eurocentrismo e do racionalismo cientifico clássico. A ideia da racionalidade técnica, por exemplo, esconde um mecanismo de controle mental fortíssimo sobre o corpo e a natureza humana. Então, não podemos nos descolonizar nós próprios – os mestiços, os híbridos em formação – sem descolonizar os conquistadores que continua conquistando através da mídia, da produção de manufatura, da produção de ideias.
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